Sakura Card Captors e as Várias Faces do Amor

Precisamos Falar Sobre Sakura Card Captors!
Em algum ponto do mês passado, eu fiquei sem mangás pra ler - quer dizer, um mangá completo, sem contar estes que estão em dia e temos de ter paciência no aguardo do próximo capítulo -. e enquanto decidia qual seria meu próximo quadrinho japonês, a única certeza era: queria ler um Shoujo. Os últimos que terminei foram Aoharaido e Orange, e desde então só Shounens e Seinens.

Estava com saudades de algo mais simples e romântico, e entre as pesquisadas incessantes e após papear com um amigo, decidi dar uma chance pra uma obra querida da infância: Sakura Card Captors. Eu não possuo tantas memórias do anime, somente dos personagens principais e o cerne da história envolvendo as cartas Clow/Sakura, apenas sabia que tinha gostado quando o conferi.

Porém, mesmo com reminiscências escassas, conforme lia o mangá, tive a certeza duma coisa: a animação nunca explorou de maneira tão evidente a diversidade de sentimentos e relacionamentos que sua versão original apresenta. Seja pela censura do público alvo, a plataforma mais abrangente ou o simples conservadorismo da mídia digital japonesa ao assunto, o anime de Sakura CC, mesmo que ótimo, deixa de mostrar todos os lados do tema mais recorrente do mangá: o amor, em sua pura e vasta forma.

O anime ainda deixa implícito o forte sentimento de Tomoyo por Sakura, assim como algo que possa ir além da amizade entre Toya ou Yukito, mas nada tão explícito quanto o mangá, onde demonstrações de afeto são constantes:

Leia da Direita pra Esquerda.
Não estou dizendo que Sakura inventou a roda. Qualquer ser que já adentrou, mesmo que superficialmente, o lado Otaku da vida, sabe que animes e mangás utilizam frequentemente da ambiguidade de gênero, como Shun e Afrodite em Cavaleiros do Zodíaco, Kurama de Yu Yu Hakusho, Akise Aru de Mirai Nikki e tantos outros, sem contar a existência de Yuris e Yaois

Porém, o que Sakura faz não é um fetiche contextual para trazer identificação aos leitores, ao tentar sugerir afetos que fogem da famosa família tradicional. O que Sakura faz é defender a integridade do amor como sentimento inato do ser, sem levar em conta se este é heterodoxo ou não. 

É simples confirmar isso: a obra quebra o paradigma do gênero ao inserir relacionamentos homossexuais, mas de forma alguma procura condenar a heterossexualidade. Há Chiharu e Yamazaki, colegas de Sakura e amigos de infância, mas sempre vistos juntos e que obviamente compartilham um carinho maior. 

Há ainda um que pode ser considerado controverso, como o caso do professor Terada e Rika que bem, são noivos - mas separados por sei lá, 20 anos?! Não é nenhuma forma de casamento arranjada, já que é nítida a paixão de Rika pelo sensei, assim como a reciprocidade do mesmo. E é com este exemplo que eu, novamente, ressalto como Sakura é sobre a pureza do amor como sentimento, e isso não se restringe a paixão apenas.

O amor não é, afinal, apenas aquele que ocorre entre casais. Isso seria limitar o mais poderoso sentimento presente em nós. Existe o amor entre amigos. Tomoyo diz que o amor que sente por Sakura não é o mesmo que a amiga sente por si, mas isso não significa que Sakura não ama Tomoyo, mas sim de forma diferente. E isso também não irá catapultar uma raiva interna que culminará em um sentimento de rancor e vingança por parte de Tomoyo. Como ela mesmo afirma: "se a pessoa que eu ama está feliz, eu estou feliz". E não são só palavras, já que ela insiste para que outros personagens tenham coragem de se declarar pra amiga. Pode parecer muito idealizado e ingênuo, mas extremamente fiel a abordagem da obra, que é, em última instância, de um otimismo latente - vide a frase marcante de Sakura: "no final, vai tudo correr bem".
 Nota: edição portuguesa.

Mas voltando à temática do amor, há o amor familiar. O que ocorre entre Sakura e Toya, pois o garoto, mesmo que negue, faz de tudo para proteger sua mana, e também o que os dois compartilham por Fujitaka, seu pai. Igualmente, é esse o amor que o avô de Sakura sente pela menina e por Nadeshiko(mãe falecida da protagonista). Amor que surge apenas ao bater os olhos na garota, mesmo que nunca tenha tido uma proximidade com a mesma. É este amor que provoca o ressentimento do ancião com o pai de Sakura, por ter "tirado" Nadeshiko de suas mãos de forma precoce, aos 16 anos. 

Este mesmo amor também exposto por Sonomi Daidouji, a mãe de Tomoyo, que amava/ama Nadeshiko e demora a aceitar que a mesma escolheu Fujitaka. Mas assim como a filha, ela perdoa o homem ao perceber que Nadeshiko era feliz com ele, e a felicidade dela é o suficiente, assim como o entendimento da força do que Fujitaka sente pela amada, já que mesmo anos após sua partida, mantém vários quadros da mesma pela casa, e aparentemente, nunca voltou a se envolver com outras mulheres(isso pode soar como um atestado de apatia e relutância em seguir em frente, e a interpretação é livre, mas é mais um exemplo que o mangá oferece para discutir as tantas facetas possíveis do amor).

Pode surgir, é claro, a problematização no caso que envolve as Daidouji: por que as duas personagens homossexuais são da mesma família? Li vários artigos por aí que tentam mostrar isso como um gatilho ao preconceito, inconsciente ou não, por parte da Clamp, mas considero um exagero. Acho que se teve alguma intenção, foi discutir a hereditariedade focado na semelhança entre o amor que ambas sentem. Como eu disse, Sakura preza pela pureza e ingenuidade, então por que não?!
A Semelhança de Pensamento Entre Mãe e Filha.

O amor familiar é adequável também na situação de Clow/Eriol para com Keros e Yue, suas criações, como pode ser visto na forte reação que as criaturas têm quando descobrem que seu mestre ainda está vivo e a mágoa por terem essa informação ocultada daquele qual devem sua existência.

E Shaoran Li, então? Assim como a heroína, já demonstrou sentimentos fortes por Yukito, no qual fazia de tudo para agradá-lo, para posteriormente, descobrir que seu coração batia mais forte pela protagonista. Li comentários de malucos comentando que o fato de Shaoran descobrir que seu amor por Yukito ser justificado pelo fato do mesmo ser a lua, assim compatível com o poder de Li, era uma amostra de como a homossexualidade pode ser artificial, por isso ele, após descobrir os motivos, se apaixona pela Sakura de forma genuína. Uma besteira do nível que não esperaria ler nem se fosse do lunático Donald Trump

O que acontece é que a obra, mesmo que glorifique esse lado inocente, também não se abstém em dialogar sobre desilusões e mudanças que ocorrem conosco. Shaoran sentia, digamos, um amor platônico por Yukito, e a convivência com Sakura lhe fez entender e apresentar novos pensamentos acerca da situação. Já Sakura, que passou quase todo mangá apaixonada por Yukito, sofre a desilusão deste, que ama seu irmão assumidamente, e é por este amor, também, que ela comete o sacrifício de deixar os dois, mas sem parar de amá-los. A felicidade de ver seu irmão e o garoto que ama juntos, é o prêmio.

Desistir de um amor, sofrer uma desilusão destas machuca, mas o sentimento é poderoso e não necessariamente restrito a ocorrer uma vez na vida. Sakura e Shaoran experimentam isso, e assim, dois personagens que outrora foram rivais, acabam entrelaçados pelo destino. 

O final, aliás, pode vir a frustrar muitos. Mesmo com uma construção primorosa e detalhada de amor, da quebra de paradigmas, o que vemos e a consumação de um casal tradicional, enquanto Tomoyo, pelo jeito, ficará solteira pro resto da vida, ou como sua mãe, se adaptará a sociedade enquanto segue contente pela felicidade de sua amada. 

Não tenho uma opinião maior sobre isso, talvez tenha faltado ousadia, afinal, um shoujo destinado ao público infantil terminar com Sakura + Tomoyo iria gerar uma boa polêmica(século XX, não esqueçam) ainda que revolucionária, mas independente disso, poucas vezes se discutiu tão bem sobre as várias formas do amor como em Sakura Card Captors. Esse é seu mérito maior, e deve ser lembrado por isso.



*Adendo do Ivan, que contribuiu para o resultado deste post:

Sakura Card Captors, o anime, criado pela Madhouse, nos anos 90, agrada o público que curte emoção de lutas e magia. Conta com humor bem construído e meigo, relações que fogem ao padrão e ainda consegue trazer aquelas pequenas “lições” que auxiliam no pensar sobre as atitudes do dia a dia, com a mostra de valores.

Frases como “ai ai ai Yukitooo”... “Vai dar tudo certo”... se você também leu com a voz de Sakura e ainda se emociona ao ouvir a OST, e quando revê algum episódio, não tem como não se emocionar, e aí sentimos o real significado de nostalgia.

Em todo caso, tendo em vista o preconceito, o que o anime aborda são pessoas (e também seres sobrenaturais) que amam; independente da forma de amor, é amor! 


Espero que tenham curtido!

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